Bondade imerecida
A bondade e a caridade são para quem as merece? Sempre me chama muito atenção a parábola que Jesus conta do empregador que contrata trabalhadores para sua vinha em diferentes horas do dia e, depois, paga a todos a mesma quantia (cf. Mt 20,1-16) ou o “excesso de misericórdia” que o pai usou com o filho mais novo que retorna à casa, na parábola do pai misericordioso (cf. Lc 15, 11-32). Injusto, dirão alguns. Imerecido, dirão outros. Ingenuidade, dirão muitos. Faz-nos pensar na lógica a partir da qual queremos orientar nossa vida. É a lógica da justiça fria e calculista? Ou será que a proposta para a convivência humana deve seguir outros parâmetros?
Hoje constatamos que tudo tende a ser mercantilizado. Tudo se compra e vende. O mérito é a regra para tudo. Mas há vida fora das regras do mercado. Aliás, vida que, às vezes, não é valorizada. Ela sobra e se torna um peso: crianças carentes, idosos, doentes, moradores de rua, migrantes.. São, como nos diz nosso Papa, “descartáveis”. Quando tudo é mercado, não há mais espaço para a caridade. A cobrança social pelo sucesso econômico como principal indicativo de uma vida feliz, deslocou a bússola que aponta onde está o verdadeiro e o bom para o ser humano. É claro que o econômico é importante, mas o que faz o ser humano ser feliz não está na lógica do mercado, são os valores que humanizam: a bondade, a misericórdia, a tolerância, a caridade, a valorização de cada pessoa humana simplesmente pelo que ela é, sem nenhum acréscimo. A pessoa humana tem valor e dignidade em si mesma. Somos um dom de Deus, totalmente imerecido. Cada vida que nasce pede acolhimento e valorização. Um ser humano nunca sobra. Pede para ser amado unicamente porque existe, não pelo que faz, pelo que representa, pela classe social a que pertence ou pelo que realizou de certo ou errado. A própria organização da sociedade precisa ir além da lógica do mérito, se quer buscar o bem comum.
Quando um voluntário se propõe a fazer o bem, sendo presença misericordiosa nas instituições de caridade, não almeja nada para si, nem sequer o reconhecimento. A caridade não admite acréscimos, mas ela é um bem em si mesmo. Só existe a possibilidade de amar aproximando-se das pessoas. É um erro enquadrar as pessoas em ideias, esquemas ou teorias, pois cada um é único, tem um rosto, tem uma história, que merece ser escutado e acolhido. Ir ao encontro e ouvir a história dos sofredores é a primeira caridade. Muitos preconceitos caem quando temos a coragem de nos aproximarmos para olhar no rosto e conversar. Quando somos portadores de preconceitos, talvez pensemos que não o mereçam, segundo a lógica humana, mas são igualmente amados por Deus. Para quem tem fé, acrescenta-se ainda que no rosto dos outros vemos o irmão em Cristo, que irradia em si a imagem de Deus.
A bondade imerecida é o modo de Deus agir. Nossa relação com Deus, portanto, sempre deve ter a marca da gratuidade. Se cultivarmos uma relação gratuita com Deus, com mais facilidade poderemos ver além da lógica do mérito, que aprisiona e sufoca. Santa Terezinha, no final de sua vida disse que não queria o paraíso como recompensa, mas como dom da bondade de Deus: “No ocaso desta vida, comparecerei diante de vós com as mãos vazias, pois não vos peço, Senhor, que conteis minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas a vossos olhos. Quero, pois, revestir-me de vossa própria justiça e receber de vosso Amor a eterna posse de vós mesmo.”
Por Dom Adelar Baruffi– Bispo de Cruz Alta, via CNBB